O assunto é mesada...

Entrevista concedida pelo Prof. Hélio Guilhardi à Revista Integra



1) Como os pais devem proceder quando os filhos lhes pedem dinheiro? Dar o dinheiro à medida que vão aparecendo as necessidades ou estipular um valor a ser dado mensal ou semanalmente?

H Lidar com dinheiro faz parte de uma aprendizagem abrangente que envolve as maneiras de manejar os múltiplos aspectos da vida, o que extrapola, portanto, a especificidade dos aspectos financeiros ou econômicos. Por essa razão, a relação que os pais desenvolvem com seus filhos, ao estabelecer as práticas do uso de dinheiro, pode ser muito educativa. Assim, para dar um exemplo, se o filho pede dinheiro para comprar um sorvete durante um passeio, o pai pode lhe dar o dinheiro, dizendo a ele: “Tome esta nota de dez reais. Mas vamos antes comigo até a livraria e depois você compra seu sorvete. Aproveite e compre também um ‘sonho de valsa’ para sua irmã. Fique esperto porque ainda vai sobrar troco”. Com essas instruções, o pai estará ensinando os seguintes aspectos fundamentais para o desenvolvimento sadio do filho:

- controlar a impulsividade e aumentar a tolerância à frustração, uma vez que o dinheiro está disponível para comprar o sorvete, mas o filho deve fazer alguma coisa antes, o que atrasará o acesso imediato à gratificação;
 
- pensar no outro e fazer alguma coisa em benefício do outro, no momento em que o pai o lembrou de que a irmã gosta de bombom, dando-lhe um modelo de cooperação e de ficar atento aos interesses, desejos, necessidades etc. do outro;

- desenvolver sentimento de responsabilidade, pois lembrou ao filho que haverá sobra do dinheiro e, sem dirigi-lo diretamente, poderá observar e intervir, se necessário, na iniciativa do filho de devolver o troco, que pertence ao pai;

- desenvolver sentimento de autoconfiança, ao organizar uma situação na qual o filho fará várias atividades sem ajuda do pai, tais como: escolher o sorvete, solicitá-lo à atendente, comprar o bombom, pagar, aguardar e conferir o troco etc., o que envolve tomar iniciativa, assumir a decisão de uma escolha, interagir socialmente, vencer a timidez etc.

Se este tipo de preocupação estiver presente na interação entre pais e filhos, desde muito cedo na vida da criança, partindo de situações simples, compatíveis com as habilidades atuais da criança, esta se sentirá competente e protegida. Aos poucos, o filho irá generalizando e ampliando para novas situações o que aprendeu e sentiu, sem necessidade de qualquer tipo de orientação direta, aprimorando seu desenvolvimento afetivo e comportamental. Respondendo diretamente à pergunta, enfim, os pais devem atender inicialmente às necessidades imediatas da criança, mas com a preocupação de proporcionar o desenvolvimento de autocontrole. Isso poderia ser feito dando uma quantia maior de dinheiro para o consumo planejado e moderado de alguns dias e, a partir daí, ir aumentando gradualmente as exigências que irão aprimorando passo a passo o autocontrole.

2) Quando os pais optam por dar a mesada aos filhos, como ela deve ser encarada por ambos os lados? Obrigação dos pais? Merecimento dos filhos? Ou apenas um instrumento de educação financeira?

H A mesada não deve ser enfocada como uma interação especial entre pais e filhos, diferente de outras interações. É obrigação dos pais pagarem o médico, a escola, a roupa, a comida dos filhos? Esses itens raramente são questionados, pois fica claro que se os pais não assumirem essas responsabilidades haverá danos para ambos os lados. Pais e filhos devem compartilhar direitos e obrigações: cada qual deve dar o melhor que puder e, se não for possível dar, isso deve ser explicitado sem nenhum sentimento de culpa ou de incompetência. Há alguns parâmetros para guiar o ato de dar. A doação deve envolver o amor agápico, aquele amor em que meu maior bem é o bem que produzo para o outro. Deve envolver reciprocidade: quando uma pessoa aprende apenas a receber e não é ensinada a dar, torna-se egoísta e tem dificuldade para reconhecer, espontaneamente, o bem que vem recebendo; diz-se que é ingrata. Os pais devem ensinar os filhos a retribuir, a ter a iniciativa de dar e não, simplesmente, esperar que tais comportamentos surjam naturalmente. Mais que isso, devem ensinar aos filhos que devem dar não apenas para aqueles de quem receberam algo. O ato de dar deve ser por amor e cooperação e não por dever; assim também retribuo o bem que recebi de alguém, fazendo o bem para um outro alguém qualquer. A doação deve envolver limites: quem recebe tudo o que deseja e de imediato, se torna impulsivo, consumista compulsivo e terá enormes dificuldades para lidar com o “não”, com limites, com conseqüências gratificantes que só aparecem a médio ou a longo prazo. A criança deve ouvir “sim” e “não” e deve também aprender a dizer “sim” e “não”. A mesada não é obrigação dos pais; não é direito dos filhos. É uma forma de interação — em particular, envolvendo dinheiro —, na qual aquele que tem dá (os pais, no exemplo) — dentro de certos limites - o que o outro (o filho, no caso) não tem, para benefício deste, sem prejuízo para nenhuma das partes envolvidas. O filho, por sua vez, sempre terá algo a dar para seus pais: um sorriso, um abraço, uma conduta equilibrada, um ato de cooperação, amostras de um desenvolvimento sadio etc., simplesmente porque isso tudo se pode dar por amor, por respeito, por gratidão aos pais. Nunca por obrigação, nem só por dever.

3) Seria interessante estabelecer um “pagamento” por atividades consideradas positivas pela família dentro do lar, como por exemplo, arrumar o quarto, manter os brinquedos em ordem etc? Ou o dinheiro da mesada deve ser dado independentemente da realização dessas tarefas?

H Independentemente. O lar é um contexto de vida e de interação entre todos. Não há patrão, nem empregado. As responsabilidades, os deveres, assim como os prazeres, devem ser compartilhados de maneira cooperativa e harmoniosa, cabendo a cada um fazer aquilo que está dentro de suas possibilidades e desejos. No entanto, meus desejos não podem reinar soberanos, pois há o risco de prevalecer o egoísmo e a prepotência. Meus desejos devem ser limitados pelos desejos do outro que convive comigo. O diálogo pode gerar acordos harmônicos para benefício de todos. Mesada não é salário por tarefa realizada. Mas as tarefas devem ser realizadas... por todos, mesmo reconhecendo que algumas podem ser desagradáveis para mim. Mas podem ser indesejadas para o outro também. A mesada deve ser vista como um instrumento para o filho ter acesso a coisas, eventos, situações que são importantes para o seu desenvolvimento pessoal; para dar acesso a um livro, a um filme, a uma viagem, a uma festa, a uma roda de amigos, a um encontro com a namorada etc. e não como instrumento de prepotência, de exibição e de exercício de poder. Isso também vale para os pais: o dinheiro que eles entregam ao filho não deve ser um instrumento de coerção, de domínio, de opressão.

4) Uma vez que tenham optado pela mesada, a entrega do dinheiro é suficiente para uma boa educação financeira? Ou os pais devem aproveitar essa situação para educar os filhos quanto ao valor do dinheiro, quanto ao uso parcimonioso, quanto à sua destinação?

H As respostas anteriores esclarecem a questão. Mas volto a insistir que o dinheiro é instrumento de poder num sentido amplo. Às vezes, o uso parcimonioso do dinheiro, que aparentemente indicaria um equilíbrio na esfera financeira, pode ser uma estratégia para acumular bens e mais dinheiro, para usá-los como instrumento de poder e de opressão. O fato de o dinheiro ser instrumento de poder não significa que ele deva ser usado para oprimir. Além disso, o poder pode - e deve – ser usado para o meu bem e para o bem daqueles que me cercam. Os pais devem sim ensinar seus filhos a observarem as suas necessidades e a tentarem supri-las; mas devem também ensiná-los a ficar atentos às necessidades dos outros e a tentar supri-las. Este raciocínio não se aplica estritamente ao uso do dinheiro. O uso do dinheiro pode ser visto como uma metáfora de tudo aquilo de que uma pessoa é capaz. Todas as minhas capacidades devem estar a meu serviço e a serviço daqueles que me são relevantes. Ter dinheiro é apenas um dos itens – aliás, nem o mais relevante -, para nos capacitar a lidar com a vida.

5) A mesada deve ser dada a partir de que idade? E a educação financeira? Deve começar a partir de quando?

H O mais cedo possível, a criança deve entrar em contato com as relações de troca e, quando possível, estas devem ocorrer de forma consciente. Quando uma mãe brinca com seu filhinho bebê durante o banho e este ri com os afagos, já há uma troca. A passagem para as trocas que serão mediadas pelo dinheiro ocorrerá num momento além. Não há idade específica para ensinar o uso do dinheiro, pois esse uso ocorrerá normalmente durante o processo de desenvolvimento da criança. Quando dou uma bala para meu filho e digo que deve chupá-la só após o almoço, estou ensinando uma relação equivalente a dar-lhe uma moeda e dizer-lhe para aguardar o momento apropriado para gastar. Devo dar a bala e devo dar a moeda, como devo dar um brinquedo, um livro, um passeio no bosque etc. e, com tudo isso, ensino alguns conceitos básicos da vida. Quando programo com meu filho, na 2a feira, que irei levá-lo ao bosque no sábado, estou lhe dando algo: meu amor, uma promessa, uma esperança, uma visão antecipada de um programa gostoso... Tudo isso ele guardará e virá a usufruir com moderação, mas com entusiasmo, dias depois. Não é análogo a ter, guardar e usar no momento oportuno? A própria criança acaba fazendo a passagem de um nível de interação vivencial para outro nível. Informações específicas – como usar um cartão de crédito, como aplicar algum dinheiro, como controlar a conta bancária -, quando o filho for mais velho, serão aprendidas facilmente, quando os comportamentos básicos já estiverem devidamente instalados. Não se aprende a lidar bem com o dinheiro repentinamente, sem uma base de formação que ensinou a pessoa a lidar bem com as múltiplas facetas da vida: moderação, cooperação, autocontrole, respeito ao próximo etc.

6) A criança ou o adolescente deve participar da elaboração do orçamento familiar? Em que medida?

H A criança e o adolescente devem participar de quaisquer problemas ou planos familiares. Os filhos são parte funcional da família e não apêndices, que só são acionados em momentos específicos, ou quando os assuntos são “para crianças”. Há pais que dizem que nunca brigaram diante dos filhos. “Sempre nos trancamos no quarto, para discutir nossas diferenças”, costumam dizer. Seria ingênuo imaginar que as portas e paredes não têm ouvidos infantis nessas ocasiões e que os sentimentos e percepções dos filhos estão adormecidos. Todo problema ou plano familiar deve ser compartilhado por todos da família, mantidas, por certo, limitações inerentes às faixas etárias. Isso é verdade se os problemas forem moderados. Se as desavenças e problemas são agudos, então os próprios pais devem procurar ajuda profissional específica para o problema e não envolver e nem usar os filhos durante os conflitos. Os filhos, às vezes, têm importantes sugestões para encaminhar problemas, que os adultos não conseguem desvendar (não foi uma criança que gritou no meio da multidão: “O rei está nu?”). Além disso, em situações difíceis, os pais sentem-se aliviados sabendo que os filhos conhecem as dificuldades em curso, e não precisam usar o recurso da farsa: “Nada de preocupante está ocorrendo!”

7) Até que ponto os pais devem interferir na forma como o dinheiro da mesada está sendo gasto? Se os filhos quiserem fazer algo com o dinheiro com o qual os pais não concordem – comprar cigarros ou bebidas alcoólicas, por exemplo – como eles devem proceder?

H Os pais não devem ser cúmplices daqueles desvios dos filhos, que podem acarretar, a médio ou a longo prazo, prejuízos drásticos para estes. Há outros desvios também graves, mas que não aparecem de forma tão clara. Assim, por exemplo, os avanços tecnológicos determinam muitos comportamentos e sentimentos humanos, sem que as pessoas se dêem conta disso. A produção de bens de consumo descartáveis (“use e jogue fora”; “troque logo o modelo – de carro, de computador etc. -, pois o seu já está ultrapassado”; “é mais barato comprar um novo relógio do que pagar o conserto” etc.) interfere na vida cotidiana de maneira tão sutil e desastrosa, que as pessoas passam a lidar umas com as outras como se fossem bens de consumo a serem usados e, em seguida, postos de lado, como produto descartável. Os pais devem estar atentos a esse tipo de problema e lembrar-se de que o dinheiro facilita o envolvimento com tal estilo de desumanização do homem. Assim, se o dinheiro está sendo usado com bebidas ou drogas, casos extremamente preocupantes, retirar a mesada ou reduzi-la drasticamente pode ser uma alternativa, mas não basta. Há necessidade de um conjunto de medidas de intervenção para se obter um bom resultado “terapêutico”. Já ocorreram outros erros no passado, na interação pais-filhos, que ultrapassam a questão da mesada e da quantia de dinheiro disponibilizado. E esses erros provavelmente continuam ocorrendo. Há necessidade de avaliação e orientação profissionais mais profundas sobre o que está ocorrendo. Por outro lado, quando não se está falando de problemas graves – como álcool e droga - é de se esperar que os filhos tenham preferências e hábitos diferentes daqueles apresentados pelos pais. É preferível, por parte dos pais, maior tolerância; afinal, os filhos não têm que ser como eles querem que os filhos sejam. Permitam, os pais, que os filhos ensaiem seus vôos e aprendam com as conseqüências de seus atos. Um grupo homogêneo na forma de agir, pensar e sentir se condena à própria degradação. A evolução de uma comunidade, pequena como uma família ou extensa como uma nação, será mais saudável e sólida se houver heterogeneidade entre os membros que a compõe.

8) É correto os pais darem palpites sobre a compra – com o dinheiro da mesada, evidentemente - de produtos que julguem supérfluos ou desnecessários?

H Se dar palpite não significar “impor”, não vejo problemas. Os filhos podem saber o que os pais pensam sobre a vida, sobre as atividades dos filhos etc. Esse diálogo é importante porque, através dele, podem ocorrer influências recíprocas: os filhos podem ponderar os argumentos dos pais e concordar ou discordar. Da mesma maneira, os pais podem aprender melhor as razões dos atos dos filhos. Influência recíproca não significa opressão. Humildade para aprender com o outro é louvável e não uma fraqueza. Ceder é uma forma de aprofundar as relações, desde que a concessão não seja hipócrita, nem por fraqueza. Neste caso não haveria autenticidade na relação. É preferível saber o que o outro pensa e como ele agirá – mesmo que se possa discordar dele – do que ser iludido por palavras doces que se quer ouvir, mas que omitem a realidade.  

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