Depressão na Infância e na Adolescência

Entrevista com o psicólogo Hélio José Guilhardi sobre o tema "Depressão na Infância e na Adolescência" concedida a revista Mackenzie


1. Porque o número de casos de depressão na infância e adolescência tem aumentado? A que se deve este aumento?

R: O mundo tem se tornado, progressivamente, mais complexo. Os desafios para lidar com ele exigem padrões comportamentais muito elaborados, em que a diferença, entre o desempenho que leva ao bem-estar e ao desenvolvimento e aquele que produz insatisfação e fracasso, é sutil. Depressão é um sentimento produzido por condições de vida diante das quais a pessoa não possui um repertório de comportamento para lidar com elas de maneira satisfatória, qual  seja, reduzir os eventos aversivos e melhorar as condições favoráveis e satisfatórias. O que contribui para esse déficit comportamental? Excesso de liberdade, com pouca orientação e falta de limites para lidar eficazmente com as situações adversas e, até mesmo, com as gratificantes. Maior acesso às informações, sem parâmetro para distingüir o “joio” do “trigo”. Afastamento de fontes tradicionais de limites para ação, as quais tinham diretrizes construtivas para o desenvolvimento humano, tais como a escola, a religião e a estabilidade da família. (O fato de que tais instituições no passado exageraram nos controles coercitivos sugere que os exageros deveriam ser amenizados e não que eles devessem ser esvanecidos e tão enfaticamente enfraquecidos.) O despreparo dos pais para lidar com seus filhos: criar é diferente de propiciar desenvolvimento através do amor. “Pouco tempo com qualidade” tem sido usado como justificativa para “pouco tempo com consumismo e prepotência”: os filhos usufruem de prazeres fáceis ofertados pelos pais e os tiranizam, a partir da culpa que os pais sentem. Atualmente, impera o sensorial (prazer imediato, que agrada aos órgãos dos sentidos) em detrimento do sensível (gratificação a longo prazo, a partir de valores de cooperação e entendimento recíproco). Esvaíram-se preocupações com o outro, que passou a ser visto como instrumento para “meus” objetivos e não co-participante de um processo de crescimento e desenvolvimento mutuamente influenciável. Quando uma pessoa não se importa com o outro, parcialmente não se importa consigo mesma. As relações deixam, progressivamente, de levar em conta o outro, como extensão necessária de mim mesmo, e passam a ser canibalescas.


2. Como diagnosticar a depressão em uma criança ou jovem?

R: A depressão não se manifesta, exclusivamente, de uma única maneira, com um só fenótipo como deixar-se ficar a sós, isolado, vivenciando sofrimento associado a desamparo e perda de sentido da vida. Ela aparece também na forma de hiperatividade, de agressividade, de consumo de substâncias químicas, de
isolamento, de ingratidão, de improdutividade, de engajamento excessivo com atividades que levam a desfecho nenhum. Como distinguir, então, a depressão, se, atualmente, ela não tem um fator patognomônico? Ela deve ser inferida da relação entre a pessoa e seu contexto de vida social e não-social. Os  comportamentos da pessoa estão harmonizados com o que o ambiente espera dela? Ela corresponde razoavelmente ao que se espera dela? Ela cresce na sua relação com as pessoas e com o ambiente em que está inserida? Ela coopera para o desenvolvimento das pessoas e do ambiente? Ela se sente bem e contribui para que as pessoas que a cercam também se sintam bem? Ela é fisicamente saudável, dentro dos limites de sua constituição genética, isto é, depurada de sintomas psicossomáticos? Respostas positivas a tais questões indicam uma pessoa em relação harmônica com seu universo. Não estará deprimida, independentemente da maneira como realiza a harmonia em sua vida.
 
3. A depressão na infância é um fator de risco para a depressão na idade adulta?

R: Em geral, em termos práticos, sim. Conceitualmente, não precisaria ser assim. Se a criança for orientada, bem como seu ambiente social (note que não se defende o “tratamento” isolado da criança, mas do sistema social, do qual ela faz parte: não é a criança que está “doente”, mas o conjunto. A “depressão” denuncia o
desequilíbrio do contexto humano), então, a resposta é não. O adulto será um “novo” adulto: integrado, cooperativo, solidário, construtivo, com pitadas de altruísmo, desde que seu universo de desenvolvimento tenha se transformado na direção apropriada. A depressão (conforme a estamos definindo aqui) não está
inscrita nos genes, mas é produto de condições – ainda que sutis – de desenvolvimento. (Mais uma vez, é oportuno destacar que há casos – mais raros do que se pensa – de determinantes neurofisiológicos de quadros depressivos. Nestes casos, a intervenção médica é essencial, em conjunto com a psicológica.)
É enganoso supor que ter acesso a privilégios, a recompensas, a bons momentos, a “coisas”, faz bem. É mais importante a maneira pela qual se tem acesso a tais “bens”. Tudo que é “dado” não engrandece, nem realiza duradouramente. E, o que é pior, nem sequer cria vínculos afetivos genuínos com a pessoa que 
“patrocina” os privilégios. (É comum crianças mimadas serem tirânicas, agressivas e pouco reconhecidas com pais incondicionalmente dadivosos.) Somente quando a pessoa tem acesso àquilo que lhe é importante por méritos próprios, os bens conseguidos contribuem para o crescimento pessoal, para o desenvolvimento de boa auto-estima, consolidam a autoconfiança e a responsabilidade. O crescimento pessoal é constituído, a partir de comportamentos emitidos por ela própria, e não através do livre acesso a bens que lhe são dados. O homem é construído e se constrói, nunca uma alternativa ou outra.

4. Quais são os “gatilhos” clássicos que despertam a depressão infanto-juvenil?
 
R: A criança, em geral, torna-se dependente do outro (usualmente, a pessoa socialmente mais significativa e mais provedora), que pode vir a falhar: adoecer, ausentar-se, ser incapaz de prover as necessidades – cada vez mais sofisticadas e exigentes – etc. A realidade externa não se harmoniza com os privilégios distorcidos, obtidos nas relações familiares íntimas, ou seja, a criança passa a ser exigida por professores, colegas de escola, autoridades, e revelam-se, então, os  déficits de comportamentos para enfrentar tais exigências, falta de disciplina e autocontrole para se empenhar em superar tais déficits, instabilidade emocional para enfrentar e conviver com as perdas e diferenças. Em resumo, qualquer condição que evidencie para a criança que ela é “diferente”, que os recursos de manipulação social que vem manejando não mais funcionam, que entra em contato com perdas e frustrações, que precisa adiar suas gratificações e compartilhá-las, quando se disponibilizarem, que seu grande mundo (o das pessoas que a protegem) é, de fato, um micro-universo, que não lhe proverá uma vida satisfatória... qualquer destas condições pode precipitar a depressão.

5. A vida moderna, a internet, os compromissos, a cobrança pelos estudos e pelo emprego, o culto ao corpo “sarado”, aceleram o processo de depressão?

R: Podem acelerar, dependendo da pessoa com quem se está lidando. De qualquer forma, porém, internet, compromissos, excessos nos estudos e no trabalho, culto ao corpo podem ser importantes fatores alienantes. Comprometem extensa gama do potencial e do repertório comportamental da pessoa, bem como de suas emoções e sentimentos, limitando o ser humano para atuar e sentir dentro dos estreitos limites de tais atividades. A perda de contato com os valores naturais, que são intrínsecos ao ser humano, produz uma triste sensação de contínua carência no meio da abundância. Onde há tempo para o diálogo, para o afago, para o desabafo...? O ser humano tem excesso, exatamente, daquilo de que pouco precisa essencialmente. A rotina das pessoas, os valores que elas privilegiam, a forma como se relacionam, todos esses itens espelham os avanços tecnológicos, a acumulação de riqueza, as estratégias comerciais. Exemplificando, um objeto bonito, que impressiona os sentidos, prevalece sobre a qualidade do produto; o descartável é preferido ao duradouro... As pessoas “saradas”, na moda, com etiquetas de marcas são mais notadas e cobiçadas do  que aquelas que possuem valores humanos e ética interpessoal. Da mesma forma, os afetos são passageiros, descartáveis, já que o tempo todo se está em busca do novo, do diferente. Nada mais é perene; a transitoriedade se tornou a marca da época atual. Se as pessoas são descartáveis, para onde estará se deslocando a segurança, o conforto do amor genuíno, a estabilidade da família, das amizades? Cada vez mais se torna atual, em todos os níveis, a constatação de que “tudo que é sólido se desmancha no ar”.

6. Qual é o papel dos pais, psicólogos e professores nesses casos?

R: A eles cabe uma tarefa insubstituível: a de resgatar os velhos valores humanos, mesmo que numa simetria atualizada e contextualizada. Dar limites, por ex., não é mais ajoelhar-se no milho; respeito ao outro não é calar-se quando o mais velho está presente; colaborar não é se escravizar e assim por diante. No entanto, limite precisa existir, a valorização dos sentimentos e valores do outro precisa ser reinstalada, a cooperação deve substituir a competição, preservação do ambiente deve ser prioridade, não mania de ecologistas etc. O ser humano se torna melhor e vive melhor quando se desenvolve de forma abrangente. Porém, não se pressuponha que pais e professores estejam preparados para assumir os papéis que lhes cabem. O mundo se transforma muito rapidamente e não há soluções prontas num mundo globalizado, pós-moderno e... tão repleto de rótulos, conceituações que mais confundem do que esclarecem, pois não instrumentam pais e educadores a lidarem com seus filhos. Nem mesmo os psicólogos têm respostas prontas, pois também eles fazem parte – como pessoas e como profissionais – deste complexo mundo em transformação. Há, no entanto, algumas diretrizes que podem ser apontadas: as relações inter-pessoais têm que se basear no afeto; o outro deve ser tão importante quanto o próprio eu; as interações devem ser amenas; os critérios éticos devem incluir o respeito ao próximo e ao ambiente, sem prejuízo e sem vantagens individuais. Como se pode concluir, a maneira própria de lidar com a depressão infantil é a prevenção. Esta deveria começar antes de os filhos nascerem. Tarefa difícil; possível, porém!

7. Qual é o momento certo para se procurar um especialista?

R: O ideal seria um trabalho preventivo. Os pais deveriam ler livros a respeito de educação de filhos, freqüentar cursos. As escolas, as igrejas, as instituições comunitárias deveriam se preocupar com a saúde mental de seus membros e dos cidadãos em geral e criar e oferecer oportunidades de acesso ao conhecimento para pais, educadores e interessados em geral. Os especialistas por sua vez deveriam melhor se preparar para oferecerem cursos conceitualmente consistentes, mas, principalmente, práticos e voltados para instrumentalizar os participantes com procedimentos para melhorar a vida familiar, dos pais e dos filhos. Os especialistas, ora mal preparados, ora muito preocupados com formulações teóricas e acadêmicas, não prestam um real serviço à comunidade. Textos e cursos deveriam ser preparados e oferecidos sob controle das necessidades do público a que devem servir, não a serviço do próprio ego.

8. A terapia é capaz de resolver o problema?

R: A terapia ajuda, sim. É, porém, uma intervenção que começa quando o problema já se cristalizou e muito sofrimento já dilacerou pessoas e famílias. A prevenção, foi já afirmado, é a melhor solução. A terapia deve enfocar as relações envolvidas: pais, criança, escola, a comunidade, enfim, que está dinamicamente envolvida com o problema. É equívoco grave rotular a criança depressiva como a doente. O sistema está doente. Todos são parte do problema e parte da solução.  

2 comentários:

thaismaia4@yahoo.com.br disse...

Impressionantemente maravilhoso!!!

Simone Barbosa Pasquini disse...

Muito bom né Thais!!! Abçs