Como o maior conhecimento sobre o transtorno, terapias adequadas e diagnóstico precoce têm permitido às pessoas com autismo trabalhar
CONQUISTA Fernanda Raquel desenvolveu a habilidade de desenhar para se comunicar. Hoje trabalha como ilustradora |
Um cenário
impensável no passado. Na empresa dinamarquesa de testagem de softwares
Specialisterne, 80 dos 100 funcionários têm autismo. Uma das pioneiras na
contratação de mão de obra autista, ela é um exemplo do grande avanço ocorrido
nos últimos anos no universo das pessoas que convivem com esse transtorno. Com
a melhor compreensão sobre a síndrome, os autistas têm deixado a clausura do
espaço privado e ganhado o espaço público. “O autismo é um conjunto muito
heterogêneo de condições que têm como ponto de contato os prejuízos nas áreas
da comunicação, comportamento e interação social”, explica o neurologista
Salomão Schwartzman. Se durante muito tempo se falou apenas dessas
dificuldades, atualmente começam a ser discutidas as habilidades associadas e
como isso pode ser aproveitado em diferentes profissões. Tanto que já há uma
primeira geração a chegar ao mercado de trabalho. “Eles têm boa memória, uma
mente muito bem estruturada, paixão por detalhes, bom faro para encontrar erros
e perseverança para realizar atividades repetitivas”, disse à ISTOÉ o fundador
da Specialisterne, Thorkil Sonne.
Sonne resolveu
investir no filão após o nascimento do filho autista Lars, hoje com 14 anos. A
aposta deu tão certo que a empresa abriu unidades na Islândia, Escócia e Suíça
e tem servido de inspiração para outras iniciativas. O empresário calcula entre
15 e 20 os projetos inspirados na matriz dinamarquesa em todo o mundo. Um deles
é a Aspiritech, nos Estados Unidos, que, desde o ano passado, funciona com 11
engenheiros autistas trabalhando no teste de softwares. “Desde a década de 80,
pesquisas mostram que essas pessoas têm uma capacidade muito maior de perceber
pequenos detalhes visuais”, falou à ISTOÉ Marc Lazar, da Aspiritech. “Em testes
para medir essa habilidade, eles cumprem o desafio em 60% do tempo gasto pelos
demais e com grande acurácia.”
Para se chegar
à observação dessas qualidades foi preciso superar um erro de interpretação.
“Por muito tempo, o autismo foi encarado como uma deficiência intelectual”, diz
Adriana Kuperstein, diretora da Re-fazendo, assessoria educacional especial de
Porto Alegre. O que se percebeu posteriormente é que em apenas alguns casos há
a associação com deficiências intelectuais. Muitos autistas têm o intelecto
preservado, vários com inteligência superior à média, mas não conseguem
interagir porque não sabem usar os canais normais de comunicação.
CONFIANÇAO dinamarquês Thorkil Sonne tem uma empresa que explora as habilidades dos autistas |
“É como um
computador sem os softwares necessários para realizar determinada tarefa”,
compara a psicóloga Alessandra Aronovich Vinic, que pesquisa autismo. Em seu
consultório, ela aplica o método do treino das habilidades sociais. Seus
pacientes aprendem, por exemplo, a reconhecer as feições relacionadas a
sentimentos, como tristeza e alegria, ou a fixar o olhar no outro enquanto
conversam. Pode parecer prosaico, mas faz toda a diferença para quem tem
autismo. “As pessoas se comunicam visualmente o tempo todo”, fala Júlia
Balducci de Oliveira, 23 anos. Para a jovem, não conseguir olhar nos olhos era
uma fonte de angústia só superada com terapia. Formada em cinema, hoje Júlia
trabalha na direção de um documentário sobre o autismo.
Atualmente se
sabe que quadros mais discretos também se incluem no chamado espectro autista,
com boas possibilidades de tratamento. “Mas há 30 anos somente pacientes muito
graves eram diagnosticados”, explica Ricardo Halpern, da Sociedade Brasileira
de Pediatria. “Eles eram internados, sedados e alijados do convívio social.” A
delimitação desse grupo maior de pessoas aprimorou os métodos de tratamento.
“As intervenções começaram a ser feitas mais precocemente, gerando maior
inserção social”, disse à ISTOÉ o brasileiro Carlos Gadia, professor do
departamento de neurologia da Universidade de Miami e diretor-médico da ONG
Autismo&Realidade. Os principais beneficiados foram os pacientes de
quadros mais leves.
Foi o caso da
jovem Fernanda Raquel Nascimento, 18 anos. A terapia ajudou a jovem a vencer os
obstáculos que encontrava para interagir. Também progressivamente ela
transformou em profissão o que era uma de suas formas de comunicação, o
desenho. Hoje ela comemora seus primeiros trabalhos de ilustração para a
Livraria Saraiva, em São Paulo. “Com o dinheiro, quero cursar faculdade”, diz.
A jovem ainda trabalha em casa, mas o objetivo é que passe a dar expediente no
escritório. “Ela realiza um trabalho de alta qualidade e com um ótimo
atendimento da demanda”, fala Jorge Saraiva, proprietário da rede de livrarias.
Depois do contato com Fernanda, a empresa iniciou um plano para a contratação
de pessoas com diferentes tipos de transtorno, entre eles, o autismo. Que se
torne um cenário comum.
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